O peso das palavras
Com uma serenidade impressionante o ministro retorquiu ao
provocador com uma frase que nunca mais esqueci: “Se me acusa de querer acabar com a miséria
sempre lhe digo que isso é um elogio, mas estou longe de me sentir possuído de
competência para tão grande tarefa. Na certeza de que só no dia em que acabar a
miséria, as misericórdias deixarão de existir, pois uma coisa depende da
outra.”
Naquele momento tive uma
estranha sensação de perceção do peso das palavras.
Vinte anos depois fomos
sacudidos por um novo debate vigoroso, desta vez em torno do chamado “Livro
Branco da Segurança Social”. Ainda que a relação e forças não fosse de todo
favorável a uma evolução plenamente satisfatória, houve algumas coisas
positivas nesse processo. O debate ficou marcado por um novo conceito,
perigoso, que se pretendia redutor de todo o processo de evolução futura da
Segurança Social, e que a partir daí ficou conhecido por “solidariedade
intergeracional”.
Para os tecnocratas que se
infiltraram na discussão, o sistema tinha de ser definido por um de dois
modelos possíveis, reduzindo a Segurança Social a mera peça financeira, e sendo
assim teria de funcionar ou em regime de redistribuição ou de capitalização. Pudicamente,
e para não terem de decidir por uma das partes, os responsáveis pelas
conclusões optaram por uma dúbia designação de “capitalização atenuada”,
baseados na existência do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança
Social, alimentado pelo superavit do sistema.
Mas, em rigor, a nossa
Segurança Social funciona em regime de redistribuição.
E o sistema está legal e constitucionalmente
enquadrado por dezassete princípios, o terceiro dos quais é o da solidariedade.
Este princípio subdivide-se depois em três planos, o nacional, o laboral e o
intergeracional.
Vista desta forma, a
solidariedade intergeracional vale portanto um terço de um dos dezassete
princípios do sistema, ainda que, como ideal possa representar muito mais. O
problema é que, essa gente que anda para aí a gritar “solidariedade
intergeracional” a torto e a direito, o faz com o objetivo escondido de reduzir
a Segurança Social a uma coisa utópica, quiçá misericordiosa e, acima de tudo
enquadrável na lógica do lucro.
E então é fácil apanhar as
novas gerações, sem estabilidade profissional ou sem emprego, a refletirem o
porquê de financiarem um sistema sobre o qual lhe alimentam as dúvidas se
existirá quando chegarem a velhos e tiverem então direito a reclamar o seu
quinhão da solidariedade intergeracional.
Hoje a utilização, mesmo por
muita gente bem intencionada, desta pesada designação “solidariedade intergeracional”,
está a ser instigada na sombra pela alta finança, como alavanca da sua
estratégia para dominar o universo financeiro da Segurança Social, o que passa
para já por conseguir criar um ambiente psicológico favorável à introdução do
chamado “plafonamento”.
Para resistir a esta
ofensiva esclarecer é preciso.
Por: Manuel Cruz