A carta abaixo transcrita foi-nos enviada pelo nosso amigo Fernando Gonçalves
Os sublinhados e a foto são nossos
CARTA AO PRIMEIRO MINISTRO DE PORTUGAL
Exmo. Senhor Primeiro
Ministro
Hesitei muito em dirigir-lhe
estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação
que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu
costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para
o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro
da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há
que fugir-lhe.
Para ser inteiramente franco,
escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá ter em V. Exa. qualquer efeito –
todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo,
inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não convida
à esperança numa reviravolta! – mas, antes, para ficar de bem com a minha
consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a
mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre
de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se
preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o
que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo,
mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.Mas tenho, como disse, 82 anos e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice – da minha e da dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco – ou é muito – a experiência de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século XX (Eliot): “Um velho, num mês de secura”... A velhice, encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia.
A velhice, Senhor Primeiro
Ministro, é, com as dores que arrasta – as físicas, as emotivas e as morais –
um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento
dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que
dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria
da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos
contos singulares do seu belíssimo livro intitulado The Garden Party: “O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para
a primavera.” Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para
nós, que não temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi
nossa, já, de certo modo, nos definiu. Hoje, não. Hoje, sentimos que já não
interessamos, que, até, incomodamos. Todo o discurso político de V. Exas., os
do governo, todas as vossas decisões apontam na mesma direcção: mandar-nos para
o cimo da montanha, embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o
urso lendário (ou o frio) venha tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o
conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados (seria muito), mas, de
algum modo, utilizáveis: sempre temos
umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos
da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois
dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta
dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma
ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi
desejando longínquo. Chegado, já sobre a tarde, o momento de alguma
necessidade, tudo nos é retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao
contrato anteriormente firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a
doença, contra a dor e contra o isolamento gradativamente crescente, que nos
constituímos em alvo favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam
de uma forma de disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos
custos da saúde, actualizações salariais – tudo pela borda fora. Incluindo,
também, esse papel embaraçoso que é a Constituição, particularmente odiada por
estes novos fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que
andaram a brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões,
que enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que
dá o que não é dele e paga o que diz não ter, para que eles enriqueçam mais,
passando a fruir o que também não é deles, porque até é nosso.
Já alguém, aludindo à mesma
falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas, em relação à velhice e aos
seus poderes decrescentes e mal apoiados, sugeriu, com humor ferino, que se
atirassem os velhos e os reformados para asilos desguarnecidos , situados, de
preferência, em andares altos de prédios muito altos: de um 14º andar,
explicava, a desolação que se comtempla até passa por paisagem. V. Exa. e os do
seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V.
Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande. As políticas
radicais de V. Exa, e do seu robôtico Ministro das Finanças - sim, porque a Troika informou que as
políticas são vossas e não deles... – têm levado a isto: a uma total anestesia
das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes
políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de
página.
Falei da velhice porque é o
pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o
fundamentalismo ideológico de V. Exa. está desencadear pelo país fora, afecta
muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem
futuro à vista, homens e mulheres de todas as idades e de todos os caminhos da
vida – tudo é queimado no altar ideológico onde arde a chama de um dogma cego à
fria realidade dos factos e dos resultados. Dizia Joan Ruddock não acreditar
que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis. V. Exa. e o seu governo
provam que o são: não há forma de conviverem pacificamente. Nisto, estou muito
de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador inglês, Francis Pym,
que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra Margaret Thatcher (uma
expoente do extremismo neoliberal), nestes
termos: “Extremismo e conservantismo são termos contraditórios”. Pym
pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro membro do
primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem agravo. A
“conservadora” Margaret Thatcher – como o “conservador” Passos Coelho – quis
misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro que não
dá.
Alguém observava que os
americanos ficavam muito admirados quando se sabiam odiados. É possível que, no
governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte dos seus
constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não compreenda), de que
lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio. Darei a V. Exa. – e
com isto termino – uma pista para um bom entendimento do que se está a passar.
Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: ”Eu amei a justiça e odiei a
iniquidade: por isso, morro no exílio.” Uma grande parte da população
portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio país, pelo delito de pedir mais
justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se fazem, cada dia, mais
invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo.
Ex-Director da Total, em Moçambique
Ex-Director da SONAP MOC
Ex-Administrador da SONAPMOC e da SONAREP
ex-Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres
Prof. Catedrático Especial de Estudos Portugueses (Univ.Nottingham)
Ex-Presidente da Comissão Nacional da UNESCO
Prof. Catedrático Visitante da Unv. de Aveiro
Doutor Honoris Causa pela Univ. de Nottingham
Doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro
Medalha de Mérito Cultural (Câmara da Cascais)