“Era de noite e levaram quem nesta
cama dormia”
De repente veio-nos à memória aquela cantiga do trovados da
liberdade. Que imagem mais perfeita para ilustrar a forma como o governo
produziu o decreto-lei que suspende a antecipação da idade de reforma. De facto
o diploma foi aprovado no Conselho de ministros de 29 de março e promulgado
pelo Presidente da República a 5 de abril, sendo nesse mesmo dia publicado como
suplemento do Diário da República entrando imediatamente em vigor, não tendo
naqueles breves dias saído para a opinião pública a mínima suspeita do que
estava a acontecer.
Tudo bem cozinhado entre o governo e a presidência, como quem
diz que cá está a prova do que a direita queria dizer quando falava da
aspiração de ter um governo, uma maioria e um presidente.
Para uma apreciação com rigor, devemos cingir-nos a dois
planos de análise:
--Será que, com esta forma secreta e apressada, foram
respeitados os preceitos constitucionais?
--A medida justifica-se e é justa?
Quanto ao primeiro ponto entramos por uma área em que mesmo
entre os mais respeitados constitucionalistas lavra a divergência. Há os que
defendem que se trata de matéria laboral, logo a discussão pública antes da
publicação teria de ser obrigatória.
E há os que entendem que se tal não é necessário, já que o
âmbito da Segurança Social se estende por um campo mais amplo do que estrito
laboral, não considerando o facto de, neste particular de reformas, estarmos
perante direitos que cada um vai constituindo enquanto trabalhador. E há ainda
um outro pormenor, que não será de somenos, que é o de que o PS enquanto
governo também perfilhou esta teoria, ou
não levando à discussão pública diplomas da segurança social, ou quando o fez
dizer que o fazia por mera liberdade, deixando campo aberto ao que agora
aconteceu. É por isso que nós não podemos correr atrás de qualquer oposição,
sem cuidar de ver a qualidade dela…
Sobre a justificação desta medida, a margem de divergência é
mínima. O governo entendeu ser apenas uma questão de números, daqueles que é
fácil manipular. Mas a realidade é bem mais ampla.
Segundo os dados disponíveis, que dizem apenas respeito ao
número de trabalhadores constantes dos quadros de pessoal depositados no
Ministério da Economia, haveria no activo 250 mil trabalhadores com idade
superior a 55 anos e inferior a 65.
Só que ninguém disse, porque nem sequer há qualquer base credível
nesta matéria, qual a antiguidade profissional destes trabalhadores. Uma
extrapolação simples revela que serão mais de 100 mil os nascidos depois de
1950, que entraram no mercado de trabalho aos 14 anos de idade e que estarão
este ano no activo para além dos 61 anos de idade com uma alta probabilidade de
terem já uma carreira contributiva de 47 anos, ou seja o mínimo de 42 anos com
descontos aos 55 de idade, o que lhes garantia de imediato o acesso à pensão de
velhice sem qualquer penalização.
Sendo duvidoso que esta suspensão seja apenas seja apenas por
dois anos, estes 100 mil trabalhadores só poderão deixar a vida activa quando
perfizerem 49 anos de trabalho! É não só uma imoralidade de todo o tamanho, mas
também uma medida inexplicável num tempo em que o desemprego atinge valores
assustadores e os mais jovens anseiam que sejam libertados postos de trabalho.
Admitindo que os argumentos do governo teriam um suporte real
e que, face ao aumento da esperança média de vida se justificava repensar a
flexibilização da idade da reforma por antecipação, então cabe perguntar porque
é que não se actuou de forma séria levando à discussão com as estruturas
representativas dos trabalhadores um recuo temporário de um ano ou dois nos 55
de idade mínima para de acesso à flexibilização? Se assim fosse ainda se
poderia admitir um mínimo de justiça na decisão. Mas não era isto o que se
pretendia.
Os cérebros da direita que dirigem este tipo de ofensivas partem do princípio de que é
preciso fazer o mal com ciência repartida, na expectativa de que um a
enormidade destas apenas seja sentida por aqueles 250 mil trabalhadores obrigados
a arrastarem-se no ativo para além do razoável. Está nas nossas mãos levar o
protesto a todo o povo e incentivar a luta. Que é de todos e só dela poderá
sair um governo que preste.
Por: Manuel Cruz
In- Voz dos Reformados